quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Eu escolho


Tem muito motorista otário. Andei viajando esses dias e tava pensando nisso. Muito motorista otário. Principalmente caminhoneiros. Não que eu tenha nada contra caminhoneiros ou ache que eles sejam otários por falha de caráter. Explico: quando você está na estrada e vê um motorista de carro de passeio cometendo uma navalhada, como por exemplo, não te dar passagem numa terceira faixa ou meter o farol alto no seu retrovisor, você pode ter certeza que na grande maioria das vezes ele é um roda dura. Um barbeiro. Ou seja, motorista de carro pequeno fazendo otarice, é porque é roda dura. Já o caminhoneiro é um profissional da estrada. Espera-se, no mínimo, que ele saiba as regras básicas de procedimento durante uma viagem. Espera-se que ele tenha experiência, já que passa a vida na estrada. Então, geralmente, caminhoneiro que comete barbeiragem, é porque é otário.

A palavra otário adquiriu uma conotação ainda mais infame, nos dias atuais. Passou a definir uma pessoa má, ignóbil. Mas quando uso a palavra otário, uso no seu sentido original. O otário é um ingênuo, um bobo. Um pobre coitado. Um pobre diabo, vítima de sua imaturidade emocional e social.

Vamos voltar aos caminhoneiros: quando você vem pela estrada em velocidade superior à de um caminhão, sendo uma estrada boa, com acostamento em bom estado e, por algum motivo você não tem boa visibilidade da outra pista para fazer a ultrapassagem, você é obrigado a diminuir a velocidade para os, talvez, 50 km/h em que segue o caminhão a sua frente. Isso mata qualquer viagem. Da pista para o acostamento não existe sequer aquele degrauzinho. Tudo nivelado. Era só chegar um pouquinho para a direita, mas não. Ele não te dá passagem. Não encosta sequer um pouco para te facilitar a ultrapassagem.

E se alguém pergunta por que ele não dá passagem, tenho certeza de que a grande maioria, a maioria absurda, responderá devolvendo a pergunta, com ar indolente de surpresa: "por que eu deveria? Não tem terceira faixa. Eu não sou obrigado a dar passagem se não tem terceira faixa!" E sabe o que é pior? Ele tem toda razão. Ele não tem que dar passagem. Não é obrigado.

Ele não é obrigado a dar passagem e é exatamente esse o ponto a que eu quero chegar. Quão boçal é um cara desses! Um otário. Meu amigo, escuta uma coisa: Se você faz uma coisa apenas porque é obrigado, na verdade, você não faz nada. Isso mesmo, você não faz. Não exerce a prerrogativa de tomar uma atitude pessoal. Uma atitude intimamente deliberada. Você é impelido a fazer. Se você só faz o que é obrigado, você não toma atitude nenhuma. Você, como um animal qualquer, apenas reage ao que acontece fora de você. Você não toma uma decisão. Você, meu amigo, não é livre. Não se sente seguro para fazer uma escolha.

Falo demais de caminhoneiro e nem era disso que eu queria falar, mas já cheguei até aqui, então preciso terminar o raciocínio. Eu quero dizer que só é livre mesmo, só exerce a sua liberdade, aquele que, não tendo a menor obrigação, decide tomar uma atitude baseada apenas em sua vontade. Em seu desejo de fazer uma gentileza a uma pessoa que nunca, sequer, terá a oportunidade de agradecer, mas a quem essa atitude facilitará o dia.

Essa é a liberdade responsável. Essa é a liberdade madura. Imaginemos um trem que se revolte contra os trilhos, por acreditar que eles tolhem a sua liberdade! Tiremos-lhe dos trilhos então. O que sobra? Uma imensa máquina, pesada e inútil, de grandes rodas enterradas no chão. A liberdade do trem são os trilhos. É preciso que compreendamos isso. A liberdade precisa de trilhos. Precisa de guias. No nosso caso, esses trilhos são os nossos princípios. Os nossos valores. O nosso caráter. Um caráter moral construído no dia a dia. Um caráter que tenha a consciência de que eu NÃO PRECISO fazer nada pelo desconhecido que passa por mim, mas que me lembre o tempo inteiro que eu POSSO fazer alguma coisa para mudar o dia de alguém.

Ah, como eu acredito nas coisas inúteis. Nas atitudes sem finalidade. Eu já disse que acho a beleza, por exemplo, uma coisa extremamente inútil. Um passarinho não voa porque é bonito. Uma flor não cheira porque é bela. O leão não vence o gnu porque tem juba. Não. Isso são coisas inúteis, mas Deus, em sua infinita sabedoria, decidiu usar a sua vontade de beleza para nos maravilhar. Para nos mostrar que a vida é mais do que toda a utilidade que se possa encontrar nas coisas ou nas pessoas.

Eu, por exemplo, acho uma coisa absurdamente inútil, outra pessoa. Completamente inútil. E, por tão inútil que você me seja, meu amor, eu me sinto cada dia mais apaixonado por você. Por tão inútil que você me seja, você me é essencialmente necessária. Sim, com toda a sua inutilidade prática, eu não quero viver sem você. Eu não quero você pra passar no cabelo e nem no pão. Não quero você pra vender ou trocar por um carro do ano. Quero você porque eu quero rir do seu lado. Porque você precisa ver a flor que eu achei bonita. Porque quando você estiver bem triste, mas muito triste mesmo e só quiser chorar, eu quero estar junto de você e dizer apenas que a vida é assim mesmo e depois ficar o dia inteiro do seu lado sem precisar falar mais nada.

Ah, como as coisas inúteis são melhores! Uma árvore pode ser a coisa mais aleatoriamente verde e cheia de folhas. Os passarinhos que nela pousam podem ser as coisas mais levemente melódicas do mundo. O sorriso de uma criança pode ser a coisa mais tocante, na vida, mas nada disso muda a política social da África e nem a realidade econômica do mundo. Mas isso não interessa, porque, diante dessas belezas, nada disso importa. Nem a África com todas as suas mazelas e nem a quebra da bolsa de Nova Iorque. Você é a minha paisagem deslumbrante. A beleza que não tem utilidade alguma, mas que muda todos os meus dias.

Pois, minha linda, você talvez seja a coisa mais inútil da minha vida, mas a minha vida não vale mais nada sem você. Você é a coisa mais inútil e talvez eu não tenha motivo nenhum pra estar apaixonado. Mas acontece que eu estou. E escolho, livremente, continuar assim e fazer dessa minha vida o lugar mais bonito pra você morar.

Um comentário:

Paula disse...

Mais uma vez, um texto digno do "Oscar" (o único prêmio famoso que eu conheço) :D