quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A terceira Margem


Um dos contos mais dramáticos que já li é "A Terceira Margem do Rio", de Guimarães Rosa. Dramático, aliás, como tudo o que ele escreveu. Temos a impressão, ao ler Guimarães Rosa, que, para escrever, ele não usa palavras, mas o próprio sentimento. Seus escritos transcendem as palavras.

Esse conto, especificamente, narrado por um filho, conta a história de um pai "cumpridor, ordeiro, positivo... quieto", que certo dia mandou fazer, para si, uma canoa. Uma canoa muito bem feita, a mão, "própria pra dever durar na água por uns vinte ou trinta anos". A mãe ralhou muito com a idéia, pois o pai nunca fora dado a pescarias.

Quando a canoa ficou pronta, o pai, "sem alegria nem cuidado", pegou um chapéu e se despediu da família. A mãe não xingou nem esbravejou. mas quando viu que a atitude do pai era decidida bramou: -"Cê vai, ocê fique, você nunca volte!"

O pai foi. E então o filho conta:

"Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho."

A vida foi seguindo e o pai sem apear da canoa. "Sem fazer conta do se-ir do viver." Os filhos cresceram. A filha se casou, o neto nasceu e o pai nunca mais pisou o chão.

O filho/narrador sentia angústias: "Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento."

Uma dia, não suportando essa angústia, foi para a beira do rio e viu, longe, o vulto do pai na canoa e, não se contendo grita : "'Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...' E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

A sequência é uma coisa assombrosa de dramática:

"Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

"Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio".

Assim termina o conto.

Desde a primeira vez que o li fiquei pensando no título: A terceira margem... Tive, de pronto, o sentimento de que a terceira margem está na canoa. A viagem sem termo do velho pai é, para o filho, a terceira margem do rio. Algo dramático, a um tempo real e imaginário, palpável mas inalcançável. Margem instável e que, por isso mesmo transporta a uma realidade inventada. Margem desconfortável. É a vida. Uma viagem apenas. Sem destino certo. Apenas um viajar que tem fim, mas não tem destino.

A falha do filho em substituir o pai, sua desconcertante "covardia" nos deixa aflitos, como se nada mais houvesse a fazer. O filho falhou com o destino. E o destino era não ter destino. Era a viagem. Era simples e sincero. Um seguir enquanto houver vida, enquanto houver rio.

É assim a vida da gente. Não há destino. Há apenas o rio e uma canoa. O rio é mistério, é lento. O rio não tem fim. É preciso coragem e uma sabedoria simples para seguir pelo rio, a lugar nenhum. O destino do homem não está numa margem do rio e nem na outra. Está numa terceira. Inventada. Apenas uma viagem grave, dramática e sem fim.

Assim também é o amor. Quanto menos finalidade houver no amor, quanto menos destino, mais sincero e verdadeiro ele é. Por isso, quando amo, não amo por causa de nada. Amo, solitário e grave, apesar de tudo. E que o amor seja sempre uma viagem gratuita... apenas viagem.



PS: O conto pode ser lido nesse site: http://www.releituras.com/guimarosa_margem.asp

2 comentários:

Fabio Hnrq disse...

acho que "a terceira margem" é o abstratismo < nao sei se essa palavra existe >. É a culpa do narrador (do que?), é o fato de todos viverem em função das lembranças do "nosso pai" que foi embora.

Enquanto os outros vão embora, o filho permanece... na margem do rio e na terceira margem, no abstrato, nos sentimentos e preocupacoes que nutria em relacao ao remar do pai.

O final... VC BEM FALOU... é estarrecedor. A primeira vez que eu li eu fiquei profundamente afetado (chorei e tudo) por que me surpreendeu demais, mesmo sendo uma coisa muito humana a atitude do filho ("humana" não no sentido "humanista", mas no sentido daquilo que é natural pra gente, enquanto humanos - medo, remorso, egoísmo...)

Adorei sua análise... e compartilho de algumas opiniões parecidas.

Tem uma música que eu (nunca pesquisei a respeito) imagino ser baseada nesse conto...

acabei fazendo um video dela..

http://www.youtube.com/watch?v=zi-4tRwUdBk

;)

valeu... parabens pelo blog

Paula disse...

Acho que agora fui capaz de entender esse conto...