quinta-feira, 1 de abril de 2010

Cartas


Nelson Rodrigues dizia que a televisão matou a janela. As mocinhas não iam mais pra janela ao fim de cada tarde para ver os rapazes saindo do serviço ou para conversar com as vizinhas. Pois eu concordo e acrescento: a internet matou a carta. Matou a expectativa de um reencontro, matou a saudade. A perfeição da saudade... sabe aquela história de que o lembrado é sempre perfeito? De que a gente lembra ajudando, querendo que tudo tenha sido bom... E se a gente tiver um pouquinho de boa vontade, vai perceber que tudo foi, mesmo, muito bom. Não vou me estender porque isso dá assunto demais e não é sobre isso que eu quero falar.

 O que eu quero dizer é que não se sente mais aquela saudade que aperta... que quer ser sentida. Aquela saudade que dá aflição, que esquece e quer lembrar. A saudade autêntica. Sim, a internet matou a saudade.

Eu gosto de receber cartas. Todo mundo gosta. Mas diferente de todo mundo, além de receber, eu gosto de escrever cartas. Eu já disse mais de uma vez que escrevendo, me acho um ótimo sujeito, mas, vivendo, me acho um péssimo escritor. Quando converso, as palavras teimam em adquirir vida própria e o tom indesejado de petulância, arrogância e imposição. Por isso sou muito chato. Não queria ser assim. Aliás, eu não sou. As palavras é que são. Verdade, as palavras têm vida própria. E, por isso, é delas que eu quero falar. Das palavras escritas. Das cartas, especificamente.

Havia um ritual, na época das cartas, que consistia em, simplesmente, esperar resposta. Isso, por si só, já era um grande catalisador de emoções. Fosse carta de amor ou amizade. A eventual demora desencadeava um rol de conjecturas: "será que ela (ou ele) ficou chateada com aquilo que eu falei? Não. Provavelemente a carta se extraviou. Esses correios incompetentes! Mas... e se ela estiver simplesmente me ignorando! Mas quem ela pensa que é? Acha que tá podendo? Ah, mas ela não perde por esperar..." E no calor dos devaneios resolve olhar mais uma vez na caixa de correspondência e -surpresa- eis ali a carta esperada.

Surge agora outro ritual: o de saborear a carta. Adiar a leitura. Abrir com todo cuidado o envelope, cheirar o envelope, admirar a tinta da caneta, a caligrafia, imaginar o momento da escrita, o estado de espírito do remetente naquele momento: "ah, ele separou tempo pra me escrever! Esse papel veio das mãos dele!" É... a carta é uma delícia especialmente pra mulheres apaixonadas. Mas o é também pra quem não está. É o máximo de intimidade possível à distância.

Sinceramente eu acho que a carta deve ser escrita à mão. A caligrafia é necessária como o tom de voz. Como é bom ou vir a voz de alguém querido! Assim deve ser, na carta, com a caligrafia.

Mas existe a máquina de escrever. A carta escrita através de máquina de escrever ainda é uma carta. Ainda vai de mão em mão. Mas não tem a caligrafia: o "tom de voz" de quem escreve. Mas ainda é uma carta. Meu problema é com o e-mail.

Não existe nada no mundo mais impessoal e insensível do que um e-mail. Coisa automática e sabidinha, que serve mais para atrapalhar a vida dos outros do que comunicar, noticiar ou outra coisa do gênero. Pior do que o e-mail, só a carta impressa por computador.

O e-mail pode ser o que for, mas tem lá sua personalidade. É, de qualquer forma uma "carta eletrônica". Uma carta impressa por computador, por sua vez, mais me parece algo vindo do além. É de uma indelicadeza tão insensível quanto as felicitações de aniversário remetidas pelo comitê eleitoral de um candidato a deputado de quem você nunca ouviu falar. A escrita de uma carta evoca a tomada de tempo para ser dedicado a um destinatário. Tenho a sensação de que a idéia vai direto da cabeça para a ponta da caneta ou para os tipos de uma máquina de escrever. Há um contato físico. Há uma transferência. A carta, assim, transporta sentimentos. Leva um pouco de um para outro. Uma carta impressa é a coisa mais sem personalidade que eu conheço. Aquelas palavras vêm do além. Do submundo digital do além. Só servem para informar preços e prazos.

Não suporto mais ouvir aquela velha sabedoria de adolescente: "viver é escrever sem borracha". Mas confesso que realmente isso me provoca uma sincera simpatia. Eu gosto de perceber os borrões, os atos falhos, os escorregões que provam que uma escrita perfeita envolve dificuldades, tentativas, erros... e oferecer o escrito à leitura, provando, acima de tudo, que é possível viver bonito, apesar das cicatrizes.

Não acho que exagero dizendo que conviver é como escrever cartas. É marcar o outro com uma palavra ou um olhar e, através desse outro, espalhar um sentimento. É marcar vidas e criar saudades. É dominar a arte de sentir essa tristezazinha mais feliz que é a espera de um retorno. Mas isso, só pessoalmente. Sem a impessoalidade da carta pronta, corrigida e revisada. Não, não uso ctrl+p. Vivo à mão livre.

2 comentários:

nathi disse...

Já tem dias que eu tô lendo esse texto e procurando alguma coisa pra discordar. Mas acho que agora tenho que admitir que não tenho muito que discordar. Aí eu percebi que descordar é fácil, difícil é concordar.

Eu só não diria que a internet matou a saudade. Ok, talvez tenha sido como você falou mesmo, matou a "perfeição da saudade", aquela saudade autêntica. Acho que a saudade está mais ligada a tempo que a distância. Você pode estar mais próximo que nunca de alguém e ainda sim sentir saudade daquela pessoa, do que ela foi, do que vocês foram, de um "lembrado que foi perfeito". Enfim, não vou me estender porque vou acabar criando um post aqui.

;*

Unknown disse...

Gostei desse texto...



Ah! To lendo um livro muito, muito bom!Acho que vc vai gostar (se já não tiver lido...) "Noticias do Imperio".
^^

bjas!