segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Um guardador de coisas velhas


Tenho um extraordinário talento para a bagunça. Não louvo a minha desorganização mas a reconheço e admito. Sou o analfabeto da ordem. Ainda hoje deixei, sobre a minha mesa, um documento, enquanto procurava por outro. Pronto, agora são dois documentos perdidos para sempre no buraco negro da minha desorganização.

O fato é agravado pela minha memória de galinha velha. Saio da sala com um papel nas mãos apenas para perceber, no meio do caminho, que ele não está mais em minhas mãos. E não faço a menor idéia de onde ele possa ter ido parar. Saio louco e descabelado a procurá-lo para, ao encontrá-lo, por a culpa em alguém, por tê-lo largado em algum lugar absurdo, como, por exemplo, debaixo da garrafa de café, na cantina.

Sim, minha distração é antológica. Tenho canetas espalhadas por toda a inspetoria mas nunca tenho uma à mão, quando preciso, por mais que eu percorra toda a inspetoria. Não lembro os locais estratégicos que eu escolhi para deixá-las.

Saio novamente da minha sala, desta vez para entregar um expediente no cartório. Entrego o expediente e saio com a sensação de que estou esquecendo alguma coisa. "Tinha certeza de que tinha algo nas mãos quando cheguei!", para constatar, afinal, que o que eu tinha nas mãos era justamente o expediente que eu levei, exclusivamente para ser deixado no cartório. É assim: minha memória às vezes funciona ao contrário, lembrando do que não acontece ou, simplesmente, do que é eventual e deve ser esquecido.

O mais interessante é que eu gosto muito das coisas arrumadas e organizadas, onde a minha distração não possa vaguear tanto. Sou até, às vezes, meio obsessivo pela arrumação. Tenho arroubos heróicos e me ponho a tentar arrumar as coisas. Sento-me à mesa e começo a repassar papéis, selecionando o que é inútil e o que é imprescindível, com a intenção de guardar apenas o essencial e jogar fora o que entulha minhas gavetas. Termino por dividir todas essas coisas numa única pilha de papéis. Desde um canhoto de pagamento de gasolina no estado de São Paulo até uma carta que me chegou às mãos por engano, são devidamente acondicionados na pilha dos documentos imprescindíveis.

A verdade é esta: Eu sou um Guardador de coisas velhas. Papéis, parafusos, sentimentos... Não gosto de jogar nada fora. Jogar fora, seja lá o que for, é, pra mim, uma violência. Vai contra meus princípios.

Repare você: as pessoas organizadas não têm apego. Não têm amor. Não, não exagero, é por falta de amor que se obtém a organização. Quem joga coisas fora, joga fora sentimentos. Se desfaz das coisas que preenchem. Seja uma prova antiga, da faculdade, seja uma saudade de alguém.

Como eu poderia jogar fora aquela carta que me chegou às mãos por engano? Estaria, a senhora Liodívia (é o nome da remetente) confessando seu amor pelo destinatário! Um dia eu mesmo levarei essa carta ao endereço indicado, para que o senhor Walmir tome conhecimento do amor que desperta naquela mulher que, embora não me inspire, pelo nome, nenhuma beleza, merece ter seu sentimento entregue nas mãos certas. Como eu poderia me desfazer daquele canhoto de posto de gasolina no estado de São Paulo, se naquela viagem eu admirei paisagens belíssimas pela estrada?

Jogaria, eu, fora, o alimento das minhas divagações apenas para organizar, por alguns instantes, as gavetas da minha vida? Sim, repito: a organização e o amor não podem conviver. Onde o amor se instala ele causa uma ventania que espalha tudo e nos joga numa confusão tamanha!
Por isso este será o meu protesto. a minha mesa permanecerá bagunçada.

Não, o mundo não precisa de mais organização. Isso já há de sobra nos áridos corredores burocráticos das instituições. O mundo precisa é de amor. Esse amor ao qual eu presto o meu louvor através desta simples vida desorganizada.

6 comentários:

Mariana Botelho disse...

Ricardo,

deixo aqui registrada minha admiração imensa por sua prosa. Confesso aqui minha incompetência para dizer tão bem em linhas horizontais...rsrs

adorei.

Mariana Botelho disse...

Ah, e eu também faço parte do clube das baratas sentimentais: adoro papéis velhos e sou desorganizada!

evoé!

Paula disse...

Sim, sim e sim! É isso assim bem do jeitinho que vc descreveu. Comecei a ler rindo, te imaginando em cada detalhe do texto. Um papel na mão e perceber que o perdeu na metade do caminho. "Eu tranquei o carro?"
E ainda me senti descrita. Odeio aquela bagunça espalhada que eu não sei nem por onde começar. Mas eu sei que ela é minha mesmo, na verdade não tem nada pra ser arrumado. Aí me irrita mais! Vou recolher papéis velhos e aí eu percebo que são todos importantes! (Aí eu tento treinar o desapego e arrependo cinco minutos depois por ter jogado aquela caricatura num aula chata...)
É isso assim mesmo. Quem não guarda suas velharias não guarda nada. E nem sempre é fácil jogar algo fora...
No fim das contas, eu, você, e todos os demais desorganizados sabemos de quem vem isso né? Já viu alguém pra guardar mais coisa esquisita, "inútil" e velha, como vó? Esses dias ela xingou prq mãe queria jogar fora uma caixa de descarga velha, que tava lá, só o pedaço no quintal. Vai entender...

Vivi Ramalho disse...

Ricardo,
Bom, de todos esse é o texto que mais me encantou... me identifiquei com cada frase , cada palavra ...mas é algo mais... talvez a facilidade que você descreveu de forma tão bonita , essa "relação" que a gente têm com as coisas, é imprescindível que haja muito talento para isso , e você mostrou que tem de sobra.
Parabéns!!!

Unknown disse...

Esse texto tem que ser publicado. Fato.
(hoje eu to muito exagerada. Releve hahaha)

aprendizar.blogspot.com disse...

Lendo esse texto maravilhoso descobri, hoje, que estou mais pro lado da desorganização do que da organização. Quando era jovem e solteira era capaz de detalhar os lugares onde guardei uma carta ou um objeto de lembranças imortais, mas agora... casada e na profissão de professora primária (hihihi - ensino fundamental) vejo que meu lado organizado está indo dar um passeio por aí, pois tá difícil de acontecer a dita "ordem" em meus papéis importantes e/ou não (imagine jogar fora aquele bilhetinho cheio de carinho de um aluno que aprendeu a ler e escrever e está te agradecendo por isso? Ou aquela atividade super legal que posso trabalhar no próximo ano? E os bibelôs que ganhei, as cartas de amigos que nunca mais vi, mas que estão vivos na memória? Quase impossível meu Deus... E o pior disso tudo é que, vira e mexe, vem alguém da família morar comigo, aí é que a coisa pega - mudar tudo de lugar para caber mais uma pessoa no meu ap, hahahahha, a sala fica parecendo depósito de botequim e eu parada na porta tentando encontrar lugar pra cada coisinha... é um dia alguém me falou que tenho cara de que gosta de guardar coisas velhas... ele tinha razão. Esse texto descreveu muito bem a vida de uma pessoa des - organizada. Parabéns.
Deveria divulgar esses texto, muito bom.