quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

O Leviatã (A bosta no ventilador e o medo coletivo)

O Estado, em termos ideais, é a personificação do interesse de uma sociedade da qual e para a qual efetivamente se constituiu. É detentor, portanto, de meios e mecanismos de controle dos agentes formadores dessa mesma sociedade, na medida em que os interesses desta devem, sempre, ser considerados superiores aos interesses individuais daqueles.

Formado pela confluência de interesses difusos, parece contraditório dizer que é função do Estado manter subjugados, em prol de uma finalidade maior, esses mesmos interesses. Entretanto, é indispensável ao convívio social, a compreensão de que algo maior que o indivíduo detém o poder de controlar e dirimir as insatisfações e desentendimentos havidos entre particulares. E, se há esses desentendimentos, haverá, sempre, a possibilidade de exasperação na defesa do interesse próprio, pois ele não deixa de existir e, assim, de forma simples e independentemente de demais fatores, sejam sociológicos, econômicos ou culturais, se entranha e permanece no seio da sociedade, de forma latente, a violência.

A criminalidade, por sua vez, demanda maior discussão, pois nasce, essa sim, não só da insatisfação de um interesse, mas da intenção prática de, por meio da violência, realizar, em detrimento de pessoas ou instituições, qualquer ação que fira a ordem social. A criminalidade sim é gerada por fatores culturais e socio-econômicos, entre outros.

Entendemos a violência, então, como um fenômeno social em estado latente que explode, às vezes, em atos violentos e criminosos. A criminalidade é, por sua vez, formada por ações reais e específicas, causada por fatores diversos e complexos.

Existe, também, um grande e terrível monstro criado pela compreensão, geralmente distorcida, das manifestações de violência e criminalidade. É o Leviatã. O monstro do caos que rege, atualmente, as interações sociais e se alimenta de si mesmo, ou seja, da sensação de medo e insegurança que habita o subconsciente popular. Criado pela ênfase dada, em grande parte pela mídia, às notícias de crimes violentos que, embora reais e graves, se delimitam, de certa forma, a situações específicas. É a percepção deturpada da violência que exaspera a sociedade e gera o medo coletivo.

Na prática é extremamente complexo delimitar os motivos que geram a manifestação da violência por meio dos atos criminosos. Tendo compreendido, no entanto, a existência, embora oculta, da violência no seio social, pode-se enumerar alguns fatores que tornam determinados setores sociais mais ou menos vulneráveis à eclosão de atos criminosos. Fatores sócio-econômicos, institucionais, educacionais, culturais, demográficos, etc., não são excludentes. Antes, coexistem e correlacionam-se, maximizando os efeitos uns dos outros.

Responsabilizar a pobreza como motivadora de atos criminosos seria uma atitude irresponsável e leviana para com as pessoas mais simples e menos favorecidas. Entretanto, seria, também, imaturo não reconhecer que a cobiça e o desejo de ascender socialmente, mal retribuído pela falta de esperança gerada por um Estado deficiente são, sem sombra de dúvida, contributivos à vulnerabilidade social à prática do crime.

A falência de instituições como a igreja e a família, a primeira, responsável pelo mais elevado senso de ética e moral e a segunda, educadora e formadora de cidadãos honrados e responsáveis, deixou uma lacuna irreparável para a compreensão e assimilação de valores. Anunciou-se a morte da religião e até de Deus. Quem morreu, no entanto, foram o respeito, a responsabilidade, a moral. Sim, a ordem moral deve promanar de uma autoridade superior. Ausente essa autoridade, liberta-se o que de mais ignóbil o homem é capaz de conter. As leis morais não têm, assim, autoridade para constranger a conduta de alguém.

A família, portadora da responsabilidade de formar o caráter respeitável de cidadãos responsáveis é, também, o primeiro modelo de organização social a que o indivíduo tem contato. Percebe nela a idéia de respeito a leis e padrões de comportamento. Mas a família, destroçada pela banalização do divórcio e da paternidade irresponsável, não é mais capaz de acrescentar valores morais. Pais não conhecem os filhos e vice-e-versa, embora residam na mesma casa. Não há tempo para a construção de laços e valores. Todo o tempo é utilizado na busca do sustento da família.

É um tanto ingênuo esperar que pessoas formadas em tais meios compreendam e respeitem o interesse e as necessidades do outro, a soberania da sociedade ou a autoridade do Estado.

Por questões culturais, pessoas há que situam-se a si mesmas num patamar diferenciado em relação aos demais. Nascem, assim, vários tipos de conflitos: étnicos, ideológicos, etc. São uma aberração mais comum do que se imagina. Por mais que não se apresentem, sempre, com sua verdadeira face na sociedade atual, estão entranhadas no sentimento de cada um. A extratificação social gera essa diferenciação, uma vez que delimita grupos específicos de acordo com as posses materiais do agente social. Há um clima de tensão entre esses diferentes grupos que promove a má-vontade e desconfiança recíprocas.

Incluiremos aqui, também, fatores educacionais, que, se não causadores diretos de instabilidade nas relações interpessoais, são, indiscutivelmente, causa de vulnerabilidade social. Positivamente é necessária uma mínima capacidade intelectual para que se possa compreender a importância e as implicações de valores tão complexamente abstratos. Pessoas que não receberam uma bastante carga de conhecimento e não tiveram o menor contato com o pensamento abstrato não serão capazes de compreender tais relações e muito menos as conseqüências sociais de seus atos. Aliás, não compreendem, muitas vezes, sequer, a sociedade.

Há, também, questões demográficas. O grande crescimento das cidades e do número de cidadãos não é acompanhado pelo Estado, que não pode, assim, suprir as necessidades básicas ou promover a dignidade humana de diversos segmentos sociais. Fenômenos como a favelização das cidades e a incapacidade do Estado prover o mínimo de meios para a sobrevivência digna, entre outros, marginalizaram demográfica e sociologicamente tias elementos. Isso alimenta uma hostilidade entre esses desfavorecidos e a organização política social. São vulneráveis, assim, a qualquer organização que venha suprir, mesmo que de forma canhestra, a falta do Estado. E tais vãos são supridos, geralmente, por organizações criminosas.

Já citamos a sensação de medo e insegurança gerados, quase que totalmente, pela ênfase dada às notícias de crimes violentos. Entretanto, é importante ressaltar que o homem tem uma sede insaciável pelo sensacionalismo. A sensação de que a humanidade fracassou lhe proporciona um êxtase estranho. Tais sensações acabam por destruir o que lhe restava de dignidade social.

A diminuição das distâncias, a facilitação da interação social e comercial entre países trouxe consigo alguns problemas. O tráfico de armas e drogas se intensificou e aperfeiçoou. Grandes organizações criminosas se internacionalizaram. São, hoje, verdadeiras multinacionais, tais organizações. Assim, aproveitando-se das vulnerabilidades já citadas, essas organizações encontram terrenos férteis em sociedades esfaceladas pela falta de esperança e valores. Pode-se dizer que, para essas sociedades, tais organizações são o Robin Hood atual, sem, obviamente, a aura romântica que envolve o personagem mítico. 

Não se pode, é óbvio, culpar um dos fatores acima pelo problema da criminalidade. Como já foi dito, esses fatores se relacionam entre si e geram, assim, em maior ou menor grau, instabilidade e vulnerabilidade social, na medida em que contribuem para a formação do capital social negativo.

O capital social se forma no contexto dos grupos, na medida em que se desenvolvem sólidas sinapses interpessoais, facilitando o convívio e fortalecendo os laços coletivos, tornando o grupo uma unidade relativamente autônoma. Tais relações podem ser, no entanto, como já dito, negativas, de forma, por exemplo, a maximizar os efeitos de ações criminosas e não nascem, portanto, apenas das relações, mas reforçam-se ao encontrar território propício, sociologicamente preparados por aqueles fatores.

Está claro, portanto, que os fatores ora elencados são matéria, quase exclusivamente política e não policial. Não obstante, não se resolvem, os problemas daí emanados, apenas com políticas públicas, como tem ditado a moda. É preciso, obviamente, coexistirem ações preventivas e repressivas eficazes. A criminalidade instalada deve ser combatida direta e eficientemente. É sintoma de um problema. Sendo assim, o problema, em si, ou seja, os fatores causadores de tais moléstias sociais devem ser extirpados e supridos por uma maciça intervenção política de saneamento de modo a substituir, sempre que possível, o capital social negativo, por valores gregários positivos. 

Resumindo: A violência é a bosta da sociedade. A criminalidade é essa bosta jogada no ventilador e o medo coletivo é o medo que a sociedade tem... do ventilador.

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